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Da caderneta do Mimura à transformação social a partir da transferência e franqueamento de dados

por Alexandre Bazan*

 

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Quero convidar você a refletir comigo sobre os riscos da transformação social a partir da transferência de dados...
Para isso, quero voltar um pouco no tempo para lembrar como nós nos relacionávamos alguns anos atrás. Nossas redes sociais não eram digitais, nós nos encontrávamos com as pessoas mais pessoalmente, em conversas de calçada. E os riscos da sociedade eram diferentes. Eles estavam muito associados a perdas de patrimônio: um bem, a sua casa, algum móvel, eletrodoméstico, dinheiro... E para nos protegermos disso, nós erguíamos os muros das casas, às vezes, tínhamos lá um cachorro de segurança, alarme no carro, evitava andar com dinheiro, evitava andar por lugares pouco seguros... E com isso a gente tentava ter um pouco mais de segurança no nosso dia a dia.
Mas aí o que aconteceu? Em determinado momento da história, as empresas começaram a desenvolver um conceito de gestão de relacionamento com o cliente. Em inglês a sigla é CRM. Numa forma didática, a gente brinca com a sigla e chama de Caderneta de Recados do Mimura.

Mimura era o dono de uma vendinha. E ele começou a anotar as preferências de seus clientes. E ele ligava para avisar quando chegava o produto de preferência de cada cliente. Isso trazia o cliente de volta à venda e ele aproveitada para comprar outros produtos. Em algum momento dos anos 90, houve uma forte informatização desse processo e começou-se a armazenar dados. Afinal, para o Mimura fazer esse levantamento era simples, mas para um supermercado com dez caixas isso já ficava inviável. Então, as empresas começaram a investir muito nesse relacionamento com o cliente, o que aumentou demais a quantidade de dados armazenados.
Paralelo a isso, surgiram as redes sociais virtuais nas nossas vidas. E são inúmeras. Cada um de nós tem duas, três, quatro, às vezes até cinco redes sociais. E o que aconteceu? O volume de dados aumentou muito. Porque agora nós passamos a ceder nossos dados de forma muito simples. Você vai fazer um cadastro em qualquer rede social, você já informa sua profissão, onde estuda, sua preferência por filmes, músicas... E todos esses dados acabam formando um padrão de comportamento. E nós estamos fornecendo isso abertamente para quem quer que seja. As grandes indústrias de tecnologia, as chamadas Big Techs, começaram a vender isso. E nós nos tornamos um produto.
Nós abastecemos essas empresas com todos os nossos dados, livres e abertos, e essas empresas fazem o agrupamento dos nossos dados para vender a outras empresas. Então, nós partimos desde informações primárias de consumo num supermercado ou num mercadinho, mas há vários outros dados com os quais estamos abastecendo essas empresas diariamente.

A sua localização por GPS já identifica um pouco do seu perfil, gerando etiquetas e rótulos para o mercado classificar você. E assim há vários outros agrupamentos de informações. O que você pesquisa na Internet? Quais seus interesses? Quando você conecta seu celular de uma rede wi-fi gratuita essa rede coleta seus dados. Então a pessoa daquele estabelecimento consegue lhe identificar e somar dados sobre você. O próprio governo federal está aumentando muito o nível de informatização (habilitação digital, título de eleitor digital, e-social, que é um projeto enorme, tudo muito interessante, óbvio, mas que serve também para coletar nossos dados), gerando categorizações sobre todos nós.
Mais recentemente, estão implantando um sistema chamado open banking (um Facebook bancário). Hoje, nossos dados bancários ficam só entre nós e o banco. Com esse sistema, a partir de uma autorização, os seus dados vão ser compartilhados para todos os outros bancos que fazem parte dessa rede. O objetivo disso é reduzir os custos dos clientes, com ofertas mais amplas etc. Vai aumentar a concorrência e serão mais dados que estarão públicos. É só mais um entre um milhão de exemplos sobre franqueamento de dados.
Mas, afinal, o que acontece com essa infinidade de dados? Na minha humilde opinião, há quatro caminhos diferentes a serem considerados sobre a questão dos dados. O primeiro é o objetivo que toda essa informatização visa: facilitar nossa vida. Hoje, nosso dia a dia tem muitas vantagens: agendamentos de consultas, de serviços, pedidos de alimentação etc. Tem outro ponto que incomoda um pouco: o excesso de ofertas, já que diariamente somos abordados por empresas oferecendo produtos e serviços. Isso incomoda mas eu ainda não vejo como um problema. Mas há algo que, sim, é um problema: os vilões externos e os internos. Os externos são aqueles muitas vezes chamados de hackers, mas não é só isso. Há um tipo de furto por engenharia social e ele tem sucesso em razão do ponto mais frágil da segurança: as pessoas. Exemplo disso são conhecidos golpes, como o do bilhete premiado, golpe da floricultura etc. Eles pesquisam as redes das pessoas, analisam as relações mantidas por elas e atingem o ponto frágil.
Toda a questão posta aqui diz respeito a um tema central: segurança e proteção e de dados. No dia 28 de janeiro comemora-se o Dia Internacional da Proteção de Dados (LGPD). A data foi escolhida pelo Conselho da Europa, no ano de 2006, em comemoração à Convenção 108, de 28 de janeiro de 1981, sobre o tratamento automatizado de dados de caráter pessoal. Um momento, de fato, propício para refletirmos sobre o quanto estamos comprometidos com nossa segurança pessoal no universo on-line. Afinal, a cada avanço tecnológico, a coleta e o processamento de dados tornam-se maiores e mais comuns.
Como nós temos distribuído nossos próprios dados? E, como profissionais e/ou pessoas jurídicas, respeitamos os dados aos quais temos acesso? Estamos vivendo o início de uma grande mudança cultural onde cada um de nós deve se perguntar, sim, sobre o seu direito à privacidade, mas também temos a obrigação de ficarmos vigilantes para não invadirmos a privacidade do outro durante as nossas rotinas de vida e trabalho.


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*Alexandre Bazan é Analista de Sistemas e Gerente de Tecnologia da Informação na Famesp.